Os perigos de aplaudir os abusos do Estado contra nossos adversários
Abusos são ruins em qualquer cenário. De acordo com o dicionário, “abuso” é o “uso incorreto ou ilegítimo; uso excessivo ou imoderado de poderes; aquilo que se opõe aos bons usos e costumes; qualquer ato que atente contra o pudor”.
É fato então que abuso é algo que deve ser evitado. O problema surge quando não lutamos contra o abuso em situações em que este é empregado contra nossos adversários (políticos, pessoais, profissionais, etc).
Vamos usar o termo “adversário” neste artigo no sentido de adversário político, pois é um quadro enraizado no Brasil: quem não é do meu lado político é meu adversário e com ele não há diálogo (o que, diga-se de passagem, não faz sentido algum em uma democracia).
Se vejo um abuso sendo cometido contra um adversário o correto seria criticar este abuso já que é um excesso, mas muitos pensam e agem totalmente ao contrário.
Contra eles, tudo!
Vivenciamos, em um passado não muito distante, atos apontados como abusos nos procedimentos envolvendo investigações como, por exemplo, conduções coercitivas sem prévia intimação, ou seja, de início já se conduziu à força a pessoa para prestar depoimento antes da mesma ser intimada por pelo menos uma vez para comparecer espontaneamente.
Isso fere diretamente o artigo 218 do Código de Processo Penal que apresenta a redação, in verbis:
Art. 218 do CPP: Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.
(grifo nosso)
Ocorreu que as pessoas que apoiavam aquelas conduzidas coercitivamente foram contra estes atos. De outro lado, os adversários dos conduzidos “aplaudiram” os atos usando, muitas vezes, o discurso de que “para se descobrir a verdade vale passar por cima de direitos” e que “quem não deve não teme”.
Contra nós, nada!
Muitas pessoas que apoiaram abusos contra adversários no passado agora reclamam e gritam que os seus estão sendo vítimas do mesmo problema.
O que mudou? Os eventuais abusos que antes incentivavam e aceitavam por serem contra adversários, hoje criticam e acham um absurdo por serem contra os seus.
O pau pode bater em Chico, mas deve desviar de Francisco?
Na verdade, tratando-se de abusos, nem Chico nem Francisco deveriam apanhar. Aí está o ponto crucial da questão. Francisco incentivou e apoiou enquanto Chico apanhava injustamente e, agora, enquanto apanha, Chico nada faz além de ter a mesma atitude.
Chico e Francisco apanharam injustamente, erraram em não defender um ao outro e estão alimentando um sistema de abusos.
Abusos não gera nada além de abusos
Quanto mais se defende e se incentiva abusos, mais eles ocorrerão. A aprovação popular, como temos observado, é capaz de legitimar atos extremamente absurdos.
Quando os abusos de outrora foram defendidos, aqueles foram feitos. E, como foram feitos antes, podem ser feitos agora e podem ser feitos depois. O problema é que, agora ou depois, os abusos podem ser direcionados a quem antes os defendeu.
Nada de bom é retirado de incentivos e aplausos a abusos, principalmente quando estes são creditados ao Estado, ente poderosíssimo que detém recursos suficientes para destruir a vida de um cidadão em minutos e, com eventuais abusos, em segundos.
O que fazer contra abusos?
Não há nada que se possa fazer contra abusos a não ser combatê-los veementemente. Aqui entra o ponto central da reflexão: devemos combater os abusos mesmo, e principalmente, quando cometidos contra nossos adversários.
Não podemos legitimar, defender e incentivar abusos com o pretexto de derrubarmos adversários porque estes mesmos abusos poderão se voltar contra nós no futuro. Não pense que isso é impossível de ocorrer porque em questão de segundos podemos sair do status de cidadão comum de bem para investigados por um crime (seja por engano em uma identificação de suspeito ou por termos realmente cometido algum crime – não nos esqueçamos que tipificações não faltam no Código Penal para condutas que nem imaginamos que existem).
Uma frase que ilustra bem o problema dos aplausos e incentivos aos abusos é atribuída a Martin Luther King:
“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.
Martin Luther King
Se hoje defendo que meu adversário deva ser preso preventivamente mesmo que não haja necessidade, que podem acessar o conteúdo de seu celular mesmo que de forma ilegal, entre outros eventuais abusos, amanhã poderá ser eu quem irá para uma prisão de forma preventiva sem necessidade ou terei meu celular devassado de forma ilegal e não adiantará gritar porque o abuso estará protegido pelo silêncio dos bons.
Devemos começar a quebrar o silêncio quando se trata de abusos e fazer isso sem olhar a quem os mesmos se destinam pelo simples fato de serem abusos. Se queremos que nossos adversários sejam punidos por algo, que tudo seja feito estritamente dentro dos limites legais. Se dentro da legalidade não for possível atingir o objetivo, então este objetivo não é legalmente e muito menos moralmente aceitável.
Quem defende o abuso não está lutando por justiça, está perpetuando a injustiça.
Conclusão
Podemos concluir com esta reflexão que nada pode ser feito contra eventuais abusos a não ser combatê-los e que este combate deve ser feito por abusos cometidos contra os nossos e também contra adversários.
Não devemos combater abusos apenas por receio de que amanhã poderemos ser vítimas pessoais dos mesmos (apesar deste também ser um motivo), mas para que toda sociedade possa ter a segurança de que o Estado não movimentará sua máquina poderosa para conseguir o que deseja mesmo que isso ultrapasse os limites legais.
Uma sociedade livre de abusos é uma sociedade preparada para lidar com os atos do Estado e exercer plenamente seus direitos, em especial o de ampla defesa e contraditório.
Lembre-se então de nunca incentivar e defender eventuais abusos praticados pelo Estado contra qualquer pessoa e, mais importante ainda do que não defender o ato, lembre-se de criticar e lutar para que o mesmo seja coibido.
Afinal, o preocupante frente aos abusos é o silêncio dos bons!
Ouça o podcast feito para complementar este artigo em que conversei com o professor, advogado e mestre em Direito, Juliano Zappia:
Abraços e sucesso!
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