Ditadura Militar e o Poder Judiciário: uma análise jurídica e histórica acerca da atuação dos tribunais e das modificações normativas
Introdução
A História se comporta como uma brilhante ferramenta para a compreensão da inconstância das organizações sociais e, em momentos de convulsões de valores e ideias, atua como preciso instrumento para trazer luz ao presente por meio dos erros do passado. Descartes já alertava que a leitura de bons livros é a pura conversação com as mais honestas pessoas dos séculos passados. Portanto, em tempos de cega polarização política e o crescimento de desafeições diante de instituições indispensáveis para uma Democracia e um Estado Democrático de Direito, parece-me oportuno retomar o debate acerca de um período tão obscuro em nossa história que vez ou outra perde sua real dimensão pelos discursos populares. Afinal, como atuava o Poder Judiciário durante os anos de chumbo no Brasil?
Objetivos e Metodologia
Pretende-se neste artigo, de maneira objetiva, expor o funcionamento do Poder Judiciário no período conhecido como Ditadura Militar (1964-1985) no Brasil, dando ênfase para a atuação do Supremo Tribunal Federal e as modificações estruturais realizadas pelos militares no ordenamento jurídico brasileiro.
Ademais, destaca-se que o presente artigo foi resultado da leitura e síntese de uma série de artigos em despeito do tema que, ao término deste, estarão devidamente referenciados. Ainda, pontua-se o hercúleo trabalho de encontrar materiais de credibilidade e qualidade diante do tema proposto, principalmente pela documentação escassa e inacessível realizada durante o período militar.
Por fim, deixo claro que não cabe nesse artigo a disposição de opiniões políticas de qualquer espectro que seja, mas apenas de uma análise metodológica de artigos científicos, documentações e depoimentos da época. Em suma, discorro sobre fatos historicamente comprovados com relevância para a esfera jurídica pautada, principalmente, nos princípios estruturais de um Estado Democrático de Direito, deixando ao leitor o juízo pessoal e político, apenas.
Breve introdução histórica
A Ditadura Militar no Brasil ocorreu entre os anos de 1964 até 1985 e teve ao todo cinco presidentes. O marco inicial do militarismo ocorre em 31 de março de 1964, data em que João Goulart é afastado do governo por meio de um golpe militar. O cargo então é assumido de maneira provisória pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, até chegar de fato às mãos de Humberto Castelo Branco, considerado o primeiro presidente legítimo da Ditadura Militar.
O período da tomada do poder pelos militares aconteceu, principalmente, com o apoio da classe média e de outros setores importantes do Brasil. Na época, os militares dispunham de prestígio social devido, sobretudo, à atuação das tropas brasileiras na Guerra do Paraguai (1864-1870). Ainda, as diversas camadas da sociedade brasileira haviam comprado o discurso apresentado pelos militares de que a tomada do poder seria cirúrgica e pontual, isto é, apenas para conter as crises políticas momentâneas e, após estabelecerem a ordem, deixariam o poder. Tão verdade é que Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa, presidente do STF na época, apoiou a tomada do poder enquanto os demais ministros permaneceram em silêncio. Posteriormente, devido às interferências dos militares na autonomia do Supremo Tribunal Federal, o mesmo Ribeiro da Costa mostrou-se arrependido do apoio que antes havia dado e passou a atuar pela busca da autonomia das decisões do tribunal (RECONDO, 2018).
Da tomada do poder pelos militares até o término da Ditadura Militar o Brasil sofreu grande modificação nas esferas do Direito, desde a criação de novos tipos normativos, como os atos institucionais, até a alteração da Constituição e de outros diplomas legais. Essa modificação visava, como finalidade última, um controle sobre a narrativa constitucional e a falsa aparência de legitimidade como justificativa aos anos dolorosos vividos pelo país (CÂMARA, 2017). Em outras palavras, os tribunais eram de certa forma, controlados pelo Poder Executivo.
Por fim, a Ditadura Militar teve seu fim com a chegada de José Sarney para a presidência, dando início ao período conhecido como Nova República. Nesse período estabeleceram-se importantes mudanças no processo de redemocratização do Brasil, como por exemplo, a Emenda Constitucional de 08 de maio de 1985 que garantiu as eleições diretas para presidente, prefeito e governador. Tratava-se da busca pela destruição de quaisquer vestígios da ditadura.
Do Poder Judiciário
Uma das maiores mudanças ocorridas no período militar, proposta pelo Marechal Castelo Branco, diz respeito à elaboração de uma nova estrutura para a Justiça Federal. Em outras palavras, os magistrados que compunham os tribunais federais na época eram indicados por um viés estritamente político e ideológico, isto é, sem a realização de um concurso público (MORAIS, 2012). Portanto, os juízes federais não costumavam apresentar desavenças com as posições do regime, pois, haviam sido nomeados justamente pela harmonia de ideias políticas e sociais.
Por outro lado, os juízes que manifestassem ideias contrárias aos militares nos tribunais eram punidos rigorosamente, na maioria das vezes, pela cassação do cargo. Por mérito explicativo, Nilza Menezes, coordenadora do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, constatou que durante o período de Ditadura Militar dois magistrados foram cassados no Território Federal de Rondônia: Dr. Joel Quaresma de Moura e Dr. Antônio Alberto Pacca. Salienta ainda a estudiosa que a documentação judicial sobre os dois casos são extremamente escassas e que, ainda, os processos foram conduzidos sem qualquer observação ao princípio da ampla defesa. Portanto, torna-se claro que grande parte dos processos conduzidos por militares da época denotavam de um caráter inquisitorial que ocorriam de forma secreta, sem qualquer tipo de audiência ou documentação robusta.
Nesse sentido, o desembargador Aldo Castanheira, em depoimento prestado ao mesmo centro de documentação, pontua a existência e funcionamento da Comissão Geral de Investigação (CGI) durante a Ditadura Militar. Segundo Castanheira, cada estado possuía uma espécie de ramificação da CGI que, na maioria dos casos, era comandada por um militar. Os processos de cassação ali conduzidos eram rigorosamente sigilosos e encaminhados diretamente para Brasília em conjunto das coletas de depoimentos, nas vezes em que eram realizadas.
Portanto, o Poder Judiciário esteve em harmonia com os princípios e atos que embasavam o governo militar justamente pela formação de uma identificação ideológica na nomeação de magistrados federais e, ainda, da pressão que exerciam os militares por meio das penas em casos de desarmonia de ideias nos julgamentos. Posteriormente, a autonomia e soberania do governo militar ampliaram-se ainda mais com a Constituição de 1967 que garantiu a ascendência do Poder Executivo frente os demais poderes, ampliou a atuação da União e reestabeleceu a Justiça Federal (MORAIS, 2012). Assim sendo, as mudanças do Poder Judiciário ocorreram pela submissão ao Poder Executivo que, no final das contas, restringiu a atuação dos tribunais, a autonomia e a imparcialidade dos magistrados. Nos raros casos em que os tribunais se opunham aos ditames dos militares os juízes compreendiam as consequências diretas que viriam pela perseguição, na maioria das ocorrências. Um dos casos mais emblemáticos do período militar, que destacou o atípico embate do judiciário frente ao governo, foi o do jornalista Vladimir Herzog. Nesse caso, o tribunal havia condenado a União ao pagamento de indenização por danos morais e materiais para a família de Herzog, conforme segue:
EMENTA. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL POR MORTE. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA E AÇÃO CONDENATÓRIA. DANOS MATERIAIS RECONHECIDOS E DANOS MORAIS REPELIDOS. RESSARCIMENTO DO DANO. Rejeitadas preliminarmente de não conhecimento de mérito e de inépcia da inicial, por arrimada em fatos julgados inexistentes na Justiça Militar. Embora comprovado o suicídio, tal fato não afasta a responsabilidade da União pelo ressarcimento dos danos materiais. Culpa anônima do serviço público. Voto vencido, dando pela improcedência da ação declaratória, por entender que o julgamento daquela como condenatória, importaria em decisão mais gravosa para o único recorrente. (Apelação Cível nº 59.873 – SP, Tribunal Federal de Recursos (TFR), fls. 776. Relator originário: Min. Pereira de Paiva.).
Em suma, o que os militares buscavam não era o prevalecimento da Justiça, mas sim da falsa aparência de legalidade para justificarem a atrocidade de seus atos.
Dado o exposto, destaca-se que o Poder Executivo protagonizou a dominância dos poderes durante a Ditadura Militar principalmente por meio da Lei de Segurança Nacional e dos Atos Institucionais que, consequentemente, chefiaram o Poder Judiciário em seus julgados. Ademais, a Justiça Federal funcionava como um limitador na autonomia dos pequenos tribunais pois os juízes eram vinculados ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal durante o regime militar atuava segundo os interesses propagados pelos militares que, em última análise, referiam-se a falsa sensação de legitimidade dos julgados e a errônea aparência de autonomia e funcionamento das instituições indispensáveis para o exercício democrático. As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal eram conduzidas por um rígido cálculo político e ideológico que, como finalidade, buscava aparentar alguma autonomia sem contradizer a cartilha ideológica dos militares. Por outras palavras, o Supremo faz parte do Estado como um todo e, assim sendo, operava como uma espécie de extensão do próprio governo militar (RECONDO, 2018). Tão verdade é que, como já visto anteriormente, o presidente da Corte havia apoiado a tomada do poder e, ao se deparar com os absurdos promovidos pelos militares, passou a atuar como opositor ao governo da época.
Embora houvesse de fato uma pressão direta dos miliares sobre o Supremo Tribunal Federal, destaca-se uma linha tênue em que os ministros frequentemente traçavam: permanecer com os julgados protagonizados pelo discurso do regime ou contrariá-lo? De fato, ao escolherem a primeira opção a Corte estaria justamente reafirmando os interesses do governo ao transmitirem uma falsa sensação de legitimidade e democracia nas decisões proferidas. Por outro lado, a atuação contrária ao desejo dos militares em casos de absurdos cometidos, como flagrante tortura, atenderia aos anseios e princípios de um legítimo Estado Democrático de Direito, mas, geraria drásticas consequências aos ministros protagonistas (CALEGARI, 2018).
No entanto, muitos foram os casos em que a Suprema Corte optou por manter inúmeras prisões ilegais que, sobretudo, não haviam respeitado os preceitos legais e a ampla defesa. O exemplo mais clássico foi o do ex-presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, preso sem ao menos ter conhecimento das ações que prosseguiam e, ao encaminhar pedido de habeas corpus para o Supremo Tribunal Federal, teve o pedido injustamente negado (MORAIS, 2012).
Mesmo diante dessa espécie de cesarismo que assolava a Suprema Corte, raras foram às vezes em que os ministros se opuseram à brutalidade dos Atos Institucionais promovidos pelos militares. Por essa perspectiva, existiram casos em que a Corte concedeu habeas corpus para presos considerados políticos ou oposicionistas, mesmo com a ciência de que esse remédio constitucional era extremamente hostilizado pelos militares (RECONDO, 2018). Importante ressaltar ainda que essa rara oposição nunca chegou a modificar as decisões de militares em face de subversivos, isto é, os indivíduos que atentavam à ordem estabelecida (status quo) promulgada pela ditadura.
Portanto, parece claro que considerável parte dos julgados proferidos pela Suprema Corte durante a Ditadura Militar eram resultados de um engessamento e uma pressão rigorosa exercida, sobretudo, pelo Poder Executivo e os militares. Havia decerto uma preocupação que assolava os ministros frente à cassação e ilegitimidade de suas decisões por parte do regime militar. Preocupação legítima, pois durante o período de Ditadura Militar o Brasil teve três ministros cassados e dois forçados a se aposentar, como foi o caso de Adalício Coelho Nogueira. A pressão era tão nítida que em 1965, por meio do Ato Institucional nº2, o número de ministros que formavam o Supremo Tribunal Federal passou de 11 para 16 em uma escancarada tentativa de garantia da maioria nas decisões (RECONDO, 2018). Qualquer manobra que os ministros fizessem em rígida contraposição aos militares poderia ser facilmente corrigida por meio da cassação do cargo ou da aposentadoria compulsória, tendo em vista que os ministros eram nomeados pelos próprios militares. Portanto, torna-se extremamente difícil a avaliação do posicionamento da Suprema Corte como correta ou errada durantes os anos de ditadura, já que qualquer conduta precipitada pelos ministros poderia resultar na desmoralização do cargo (RECONDO, 2018).
Por essa perspectiva é possível identificar a inconstância das decisões proferidas pela Corte que em alguns momentos atendiam aos princípios de um Estado Democrático de Direito na concessão de habeas corpus sobre prisões ilegais e, em outros momentos, acatavam a cartilha ideológica dos militares.
Por fim, a Constituição Federal de 1988 se preocupou em garantir a autonomia dos três poderes, vedando qualquer tipo de domínio. Ainda, ampliou o rol de autoridades competentes para provocar o Supremo Tribunal Federal em assuntos de teor constitucional, tendo em vista que nos anos anteriores apenas o Procurador Geral da República detinha esse poder o que, sem sobra de dúvidas, possibilitava certo monopólio ideológico sobre a constitucionalidade das leis (RECONDO, 2018).
A Justiça Militar e a censura
O período de Ditadura Militar no Brasil abrangeu duas legislações que versavam sobre a segurança nacional, sendo a primeira em 13 de Março de 1967 (decreto-lei nº 314) e a segunda em 29 de Setembro de 1969 (decreto-lei nº 898), sendo essa legislação a que mais vigorou e teve maior relevância durante os anos de chumbo no Brasil. Assim sendo, o Art. 56 do decreto-lei nº 898 discorria sobre a competência da Justiça Militar, in verbis:
Art. 56. Ficam sujeitos ao fôro militar tanto os militares como os civis, na forma do art. 122, parágrafos 1º e 2º da Constituição, com a redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1º de fevereiro de 1969, quanto ao processo e julgamento dos crimes definidos neste Decreto-lei, assim como os perpetrados contra as Instituições Militares.
Portanto, toda conduta que se enquadrasse como crime contra a Segurança Nacional, independentemente dos praticantes serem civis ou militares, a competência tornava-se exclusiva da Justiça Militar.
Durante o período militar a censura era recorrente, principalmente diante dos jornalistas e opositores do regime. Como já tratado anteriormente, a censura, perseguição, tortura e até mesmo a morte eram sanções comumente utilizadas pelos militares para aqueles que conspirassem contra o governo e a ordem social. Nesse sentido, a Lei de Segurança Nacional era a responsável por coibir e regular a liberdade de expressão durante os anos de ditadura. Essa categorização era disposta pelo Art. 3º, in verbis:
Art. 3º A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva.
§ 1º A segurança interna, integrada na segurança nacional, diz respeito às ameaças ou pressões antagônicas, de qualquer origem, fôrma ou natureza, que se manifestem ou produzam efeito no país.
§ 2º A guerra psicológica adversa é o emprêgo da propaganda, da contra-propaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.
§ 3º A guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia, ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo contrôle progressivo da Nação.
Perceba como os militares buscavam enquadrar qualquer tipo de manifestação contrária ao regime como uma ameaça à ordem social. Com uma descrição tão ampla do que poderia ser considerado um atentado à Segurança Nacional, caberia aos próprios militares o poder de julgar o que seria ou não permitido dentro do território nacional o que, decerto, entregava ao governo a carta branca para penalizar qualquer indivíduo que se colocasse pacificamente contra o regime. A Lei de Segurança Nacional havia se tornado a ferramenta essencial para aparentar legitimidade aos atos absurdos cometidos pela ditadura.
Por fim, de maneira brilhante discorre Teresa Urban:
“A censura é um braço poderoso da ditadura. Corta palavras, apaga frases, elimina estrofes, condena livros, mata ideias. A censura tira da pessoa o direito de decidir o que quer criar. Estabelece limites para o que a sociedade pode saber e aprender. A censura, dizem os militares, é necessária para garantir a segurança nacional e a ordem moral. Portanto, só existem dois critérios para censurar qualquer obra artística, técnica ou científica: ou é subversiva, contra o regime, ou pornográfica, contra a família e os costumes. A partir de critérios tão vagos, fica na mão da polícia política o poder de decidir o que toda a sociedade vai ler, ouvir, assistir, apreciar, aplaudir ou criticar” (URBAN, Teresa. 1968 DITADURA ABAIXO. Editora Arte e Letra. Curitiba, 2008, p. 167.).
Dos Atos Institucionais
A maior fonte de legitimidade das atrocidades cometidas durante a ditadura militar, sem sombra de dúvidas, foram os Atos Institucionais. O Poder Executivo passou a se utilizar desses decretos legislativos como forma de contornar os impedimentos constitucionais acerca da suspensão de uma série de direitos e garantias fundamentais. Assim sendo, dos Atos Institucionais desencadearam prisões, cassações, privações de direitos indispensáveis e outras atrocidades com falsa aparência de legalidade. O AI-2, como já tratado anteriormente neste artigo, alterou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal a fim de monopolizar as decisões ali proferidas. O AI-6, em 1969, eliminou da apreciação judicial uma série de disposições. O AI-13, também de 1969, dispôs sobre a hipótese de banimento daqueles enquadrados como prejudiciais aos interesses nacionais. O AI-14 estabeleceu a pena de morte para os casos de incitação de guerra revolucionária e subversiva ao regime militar (FREITAS, 2009).
Posteriormente, o mais devastador dos Atos Institucionais talvez tenha sido o AI-5, comumente invocado em debates preocupantes e nocivos ao regime democrático. Com doze artigos, esse decreto deu início, em 1968, às cassações e suspensão de direitos fundamentais. Destaca-se o Art. 4º, que regulava:
Art. 4º. No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. (BRASIL, Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968.).
Vladimir Passos de Freitas, desembargador federal aposentado, salienta que é dessa época a cassação de inúmeros juízes:
“Talvez o primeiro caso tenha sido o do juiz de Direito José Francisco Ferreira, da comarca de Pacaembu (SP), que no dia 31 de março de 1964 mandou hastear a bandeira do Brasil a meio-pau no fórum. Entre tantos, a cassação do desembargador Edgard Moura Bitencourt (TJ-SP), autor do excelente livro O Juiz, do grande José de Aguiar Dias (TJ-DF, então no RJ), autor do ótimo Da Responsabilidade Civil e do juiz federal Américo Masset Lacombe, de São Paulo, que foi preso, cassado e voltou, anistiado, à magistratura, onde chegou à presidência do TRF-3.” (FREITAS, Vladimir Passos. O Poder Judiciário brasileiro no regime militar. [S. l.], 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br).
Em suma, o AI-5 dizimou todas as garantias da magistratura, isto é, vitaliciedade, inamobilidade e retroatividade estavam suspensas (MENEZES, ca. 2005). Portanto, o AI-5 protagonizou uma manipulação absurda do Poder Judiciário ao engessar toda a sua autonomia e independência que, evidentemente, eram embasadas nas garantias de estabilidade do cargo.
Ainda, o AI-5 proibiu a concessão de habeas corpus em crimes políticos, decretou o fechamento do Congresso Nacional e possibilitou ao presidente decretar Estado de Sítio em qualquer tempo, além de permitir o confisco de bens e a intervenção direta em outros entes federativos.
Diante disso, chama-nos a atenção o processo cauteloso e devidamente pensado pela qual os Atos Institucionais foram decretados, isto é, um grau de progressão que foi implementando o autoritarismo lentamente em nosso território até, por fim, chegar ao grau escancarado do AI-5 como o período mais obscuro da ditadura militar.
Da atuação dos Advogados
O Decreto nº 74.000 de 1974 vinculou os advogados e algumas entidades ao Ministério do Trabalho e, portanto, os operadores do Direito tornaram-se submissos ao Poder Executivo do regime militar que, consequentemente, atentava-os diretamente em suas atuações como profissionais (MORAIS, 2012). Nesse sentido, o exercício do mister da advocacia tornou-se uma atividade espinhosa e constantemente ameaçada e assolada pelo medo. Os advogados estavam aparentemente presos em seus atos, a autonomia da profissão estava comprometida. A defesa deveria estar de acordo com as imposições estabelecidas pelo Poder Executivo e, para atuarem de acordo com o disposto pelos Atos Institucionais, a atividade tornava-se praticamente impossível de convergir com os princípios de um Estado Democrático de Direito.
Conclusão
Em face do que fora apresentado neste artigo pode-se concluir que a Ditadura Militar no Brasil constituiu um período de rígidos ataques à Democracia e, sobretudo, dos direitos e garantias fundamentais de qualquer indivíduo. Ainda, todo o arcabouço cultural da sociedade era regulado pelos militares, isto é, desde a manifestação do pensamento até obras artísticas confiscadas pela cartilha ideológica do regime.
Pontual destacar ainda que o regime militar utilizou da edição de atos normativos para embasar a crueldade de seus atos que, como finalidade última, buscava a falsa aparência de legalidade e legitimidade de condutas como a tortura e a perseguição. Nesse sentido, destaca-se que os militares possuíam o poder para punir os indivíduos da maneira que o regime considerasse correto, justamente pelo aval das normas que eles mesmos haviam criado que, mesmo em embate direto com a Constituição Federal, servia como uma ferramenta para inibir qualquer questionamento por parte da população e dos tribunais.
Por fim, conclui-se que a alteração da Constituição a fim de garantir a soberania do Poder Executivo sobre os demais poderes operou como uma importante manobra no controle e engessamento da autonomia e atuação dos tribunais, em destaque do Supremo Tribunal Federal.
Logo, a ausência de uma robusta oposição ao governo militar por parte da população, e também das instituições, foram fatores favoráveis ao protagonismo de uma era de violações aos direitos fundamentais e à liberdade em toda sua forma. Todavia, o período caótico serviu como exemplo para a evolução e criação de uma nova Constituição que não abrangesse os mesmos erros do passado.
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Referências Bibliográficas
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MENEZES, Nilza. O JUDICIÁRIO NO PERÍODO MILITAR. [S. l.], ca. 2005. Disponível em: https://www.tjro.jus.br/resp-doc-historica/cdh-acervo-publicacoes/artigo-judiciario-periodo-militar. Acesso em: 1 jul. 2020.
MORAIS, Ivy Sabina Ribeiro. O alcance da Ditadura Militar no Poder Judiciário e suas procedentes reformas. In: FREITAS, Vladimir Passos; MORAIS, Ivy Sabina Ribeiro; AMARAL, Thanmara Espínola. O Poder Judiciário no Regime Militar. [S. l.: s. n.], 2012. p. 19-31.
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ABRIEL, Ruan de Sousa; RECONDO, Felipe. O STF e a Ditadura: “Tanques e togas”, de Felipe Recondo conta como o Supremo Tribunal Federal tentou evitar conflitos com os militares durante a ditadura. [S. l.]: Epoca, 2018. Disponível em: https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/04/o-stf-e-ditadura.html. Acesso em: 1 jul. 2020.
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