Uma análise sobre a possível existência do direito à fuga da prisão
Introdução
Quando uma pessoa empreende fuga da prisão ela está cometendo um crime ou se beneficiando de uma falha do Estado em sua tarefa de mantê-la custodiada após conseguir a permissão judicial para restringir sua liberdade de locomoção? É possível interpretar a fuga como uma espécie de direito de quem tem seu direito fundamental à liberdade restringido pelo Estado? Estas questões levam a reflexões que divide a doutrina em lados sem uma corrente majoritária. Um dos direitos mais importantes para o ser humano é o da liberdade e quando este lhe é restrito não ocorre de forma consensual com uma aceitação da decisão e sim de forma imposta e aplicada através da força estatal sobre o indivíduo. Importante são, então, as ponderações e reflexões sobre os pontos de vistas envolvidos na análise da conduta “fugir” quando falamos em sistema prisional.
Objetivos e Metodologia
O objetivo deste artigo é realizar uma análise sobre as implicações de eventual evasão do sistema prisional pelo custodiado em contrapartida a um suposto direito de fuga existente aos que se encontram com seu direito à liberdade reduzido.
O procedimento escolhido na metodologia é o bibliográfico em que serão analisados artigos, leis e doutrinas sobre o tema para chegarmos à conclusão.
Visões sobre o direito à fuga
Um tema que gera reflexões no direito penal é o da existência de um direito de fuga dos reclusos em sistemas prisionais. Evoca-se nestas análises o direito fundamental à liberdade que está consagrada em diversos pontos do artigo 5º da Constituição Federal (EMÍDIO, 2020).
Em uma decisão de 2005 do Supremo Tribunal Federal foi discutido o fato de ser ou não suficiente para o não relaxamento de uma prisão preventiva a fuga de um indivíduo para não ser capturado pela polícia (EMÍDIO, 2020). A ementa da decisão de relatoria do Ministro Marco Aurélio trouxe as seguintes informações, in verbis:
PRISÃO PREVENTIVA – EXCESSO DE PRAZO – FUGA DO ACUSADO. O simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo. (STF, RHC 84851 / BA, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 01/03/2005, Publicação: 20/05/2005, Órgão julgador: Primeira Turma) (grifei)
O Ministro ainda pontuou que “É um direito natural do homem fugir de um ato que entenda ilegal. Qualquer um de nós entenderia dessa forma. É algo natural, inato ao homem”.
A fuga para a preservação do direito à liberdade é entendida por muitos como um direito por não estar sancionada em um tipo penal (com exceção de quando praticada com violência contra pessoa), passando assim a ser um ato legal. Importante reforçar que, no campo punitivo, tudo que não está proibido em lei, está permitido (GOMES, 2014). Trata-se do princípio da legalidade previsto tanto no artigo 1º do Código Penal quanto no artigo 5º, XXXIX da Constituição Federal:
Art. 1º do CP – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Art. 5º da CF – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Há quem defenda também que, apesar de ser conhecido que toda pessoa humana possui o direito à liberdade de locomoção assegurado pela Constituição Federal (direito de ir, vir e permanecer), existem situações que a norma permite que o direito individual seja restrito por haver supremacia do interesse público e, com isso, através da pena corporal, surge para o sentenciado o dever e a obrigação de respeitar a sanção imposta cumprindo-a integralmente. Para este fim reforçam que, embora encarcerado, o preso tem assegurado seu direito à assistência jurídica, à saúde, à educação, ao trabalho, à prerrogativa de formular representação e petição em sua defesa além de outros direitos (LUPO, 20–?).
Guilherme de Souza Nucci (2020, p.22), no entanto, pondera que deve-se destacar a real condição carcerária na grande parte das cidades brasileiras. Não é desconhecido que vários presídios possuem celas imundas e com lotação muito superior à projetada tornando o local totalmente insalubre e, nestas condições, os custodiados contraem doenças graves e também sofrem violências de toda ordem.
A sociedade deveria trabalhar com a lógica de penas alternativas à prisão em crimes cometidos sem violência, sobretudo com a pena de multa que tende ao empobrecimento do agente que fez fortuna com os delitos. No Brasil, entretanto, prefere-se que criminosos vão para a cadeia (incluindo os que cometem os famosos crimes do colarinho branco), e esta cultura favorece a intangibilidade da riqueza dos que ganham fortunas com o delito uma vez que a pena não chega ao patrimônio formado com as práticas criminosas (GOMES, 2014).
Tipificações no Direito Penal
O Direito Penal apresenta duas tipificações relacionadas à fuga de presos em seus artigos 351 e 352. O artigo 351 prevê pena para a pessoa que eventualmente promova ou facilite a fuga do indivíduo legalmente preso ou submetido a medida de segurança, in verbis:
Fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança
Art. 351 – Promover ou facilitar a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança detentiva:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Esta pena é, no entanto, aplicada a um terceiro que promova ou facilite a fuga do preso. O preso somente será punido criminalmente se praticar a conduta do artigo 352 do Código Penal que tipifica a evasão mediante violência contra a pessoa, in verbis:
Evasão mediante violência contra a pessoa
Art. 352 – Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa:
Pena – detenção, de três meses a um ano, além da pena correspondente à violência.
A pena deste artigo só é aplicada, entretanto, se houver violência contra a pessoa praticada durante a conduta do agente em fuga ou tentativa de fuga. Sobre este artigo temos a abordagem da doutrina de Guilherme de Souza Nucci:
Evadir-se significa fugir ou escapar da prisão. O tipo penal prevê, também, a forma tentada, equiparando-a à consumada, fazendo com que seja impossível haver tentativa. Assim, fugir ou tentar fugir, para as finalidades do art. 352, têm o mesmo alcance. Por outro lado, é preciso ressaltar, desde logo, que a fuga do preso somente é punida se houver violência contra a pessoa, visto ser direito natural do ser humano buscar a liberdade, do mesmo modo que se permite ao réu, exercitando a autodefesa, mentir. Ressalta-se, ainda, que a fuga violenta exercida no momento da decretação da prisão configura o delito de resistência. Mas se o indivíduo já estiver preso legalmente e tentar fugir ou conseguir fugir mediante o emprego de violência, configura-se o crime do art. 352 (NUCCI, 2014, p. 1411).
Questiona-se também se eventual dano ao patrimônio público cometido durante a tentativa de evasão ou na evasão consumada ensejaria configuração do delito de dano qualificado previsto no artigo 163, parágrafo único, inciso III do Código Penal, in verbis:
Dano
Art. 163 – Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Dano qualificado
Parágrafo único – Se o crime é cometido:
III – contra o patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos;
O Superior Tribunal de Justiça se pronunciou quanto a isso em 2014 no julgamento do Habeas Corpus 260.350 realizado pela 6ª Turma tendo como relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura em que ficou decidido que a destruição de patrimônio público (no caso um buraco na cela) pelo preso em sua tentativa de fuga do estabelecimento no qual encontrava-se encarcerado não configura o delito de dano qualificado porque falta o dolo específico, animus nocendi, sendo, então, uma conduta atípica (DIAS, 2019).
Então, em eventual fuga ou tentativa de fuga, a conduta do dano, que, aliás, não existe na modalidade culposa, além de meio necessário para a finalidade almejada (fuga), não possui dolo específico (causar o dano simplesmente). A conduta de dano ao patrimônio público é, no caso, penalmente atípica restando a responsabilização criminal do agente apenas se presente a violência contra a pessoa prevista no artigo 352 do Código Penal (DIAS, 2019).
No entanto, há atualmente no Senado Federal o Projeto de Lei nº 4578 de 2019 que pretende alterar o artigo 352 do Código Penal para punir a evasão de estabelecimento prisional ou de local de internação e, neste caso, com ou sem a ocorrência de violência contra a pessoa. O projeto prevê que o artigo passe a vigorar com a seguinte redação, in verbis:
Evasão de estabelecimento prisional ou de local de internação
Art. 352. Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva.
Pena – detenção, de um a seis meses.
§ 1º Aumenta-se a pena de um terço até metade se o agente se vale de meio ardiloso.
Evasão mediante violência contra a pessoa
§ 2º Se o crime é cometido com uso de violência contra a pessoa:
Pena – detenção, de três meses a um ano, além da pena correspondente à violência.
Nestes casos, então, com a eventual aprovação deste Projeto de Lei, qualquer evasão ou tentativa de evasão de indivíduo preso ou submetido a medida de segurança detentiva será considerada crime.
Lei de Execução Penal
Apesar de não termos atualmente um crime para as condutas de evasão ou tentativa de evasão do preso (salvo quando este comete violência contra a pessoa), estas são consideradas faltas graves na Lei de Execução Penal (LEP) sendo, então, formas de punições administrativas. Neste sentido o artigo 50 da referida lei:
Art. 50 LEP. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:
II – fugir;
Esta punição somente tem razão de ser se a fuga for injustificada, ou seja, com eventual justificativa em defesa técnica esta deverá buscar afastar o reconhecimento da falta grave ou a redução de suas consequências seja isso feito no PAD (Procedimento Administrativo Disciplinar), seja em juízo na audiência de justificação (DIAS, 2019).
Com a aplicação de falta grave pelo artigo 50 da LEP outras consequências da mesma lei surgem ao custodiado, quais sejam:
Art. 118 LEP. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:
I – praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;Art. 127 LEP. Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar.
O tempo remido, para fins do artigo 127 da LEP, é aquele que compreende, por exemplo, ao reduzido da pena pela prática da leitura ou trabalhos internos. Todas estas penalidades ocorrem em um processo administrativo em que o preso possui direito a defesa e pode, inclusive, constituir defensor de sua confiança para tanto (DIAS, 2019).
Com a entrada em vigor da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), as faltas graves atribuídas aos custodiados passaram a interromper o prazo para obtenção de progressão no regime de cumprimento da pena, ou seja, há o reinicio da contagem deste requisito objetivo com base no tempo de pena restante a ser cumprida. Esta previsão está contida no artigo 112, §6º da mencionada lei, in verbis:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:
§ 6º O cometimento de falta grave durante a execução da pena privativa de liberdade interrompe o prazo para a obtenção da progressão no regime de cumprimento da pena, caso em que o reinício da contagem do requisito objetivo terá como base a pena remanescente.
Para Lupo [20–?], o preso possui deveres a serem observados como, por exemplo, o de comportar-se de maneira disciplinada e de cumprir fielmente a decisão que o levou ao sistema prisional vedando-lhe a prática de condutas que apoiem movimentos individuais ou coletivos de evasões ou tentativas de evasões bem como de subversão à ordem ou à disciplina.
Segundo Albanus Frauzino Dias (2019), no entanto, embora as sanções impostas por eventual fuga do sistema prisional sejam administrativas, em essência, assemelham-se a uma nova pena vez que constituem punições aplicadas dentro do próprio estabelecimento prisional. O autor ainda saliente que uma rápida análise na Constituição Federal nos permite verificar a falta de previsão legal para a existência destas penas trazidas por sanções administrativas. Defende-se, com este entendimento, que tais previsões contidas na Lei de Execução Penal não foram recepcionadas pela Constituição Federal embora sejam aplicadas de forma irregular o que, na prática, lesa a coisa julgada, a individualização da pena e o direito adquirido.
Conclusão
Pode-se concluir com esta análise da temática que é possível falar em direito à fuga no sentido de que, para a norma penal, o que não está proibido está permitido. Não há, por óbvio, uma positivação de um direito à fuga que assegure esta conduta aos custodiados, mas há a permissividade penal pela omissão punitiva normativa. É possível entender uma decisão judicial que determina a prisão de um indivíduo como uma autorização ao Estado para violar o direito à liberdade daquele e não como uma obrigação ao condenado de que abra mão de sua liberdade e mantenha-se encarcerado para atender a vontade estatal. Fato é que a condução para o sistema prisional é feita, via de regra, com o uso da força e não com a iniciativa do condenado em cumprir um dever a ele imposto.
Importante também as ponderações de que o sistema prisional, em sua grande maioria, em nada cumpre com as determinações legais relacionadas às condições de acomodação e ressocialização dos custodiados e que, se o Estado solicitou a tutela jurisdicional para limitar a liberdade de um indivíduo, aquele deve prover os meios necessários para garantir que isso ocorra pois não se deve supor que alguém abrirá mão de sua liberdade de locomoção por iniciativa própria.
Embora não haja punição criminal para quem realiza fuga do sistema prisional (salvo se cometer violência contra a pessoa), ficou evidente que diversas punições administrativas podem ser aplicadas ao agente o que, na prática, faz com que a conduta não fique impune.
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Referências Bibliográficas
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848. Código Penal. Rio de Janeiro, 07 de dezembro de 1940.
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